terça-feira, 27 de outubro de 2009

Matando heróis

- Alim? Alim??

Era domingo, mais ou menos 23h30 quando um sussurro que vinha da janela atravessou o quarto. Embriagado de sono, pus-me de pé e saí caminhando entre as pilhas de velhos jornais e composições espalhadas pelo chão. Antes de abrir a janela, sem saber se tal fato era sonho ou não, retruquei para a voz que me chamava com certa intimidade.

- Quem é?

- Não lembra mais mim? Sou eu, seu amigo de infância.

Não entendia, não assimilava e não pensava também. Ora bolas! Era domingo, havia de trabalhar logo mais e uma voz vinha da janela do meu apartamento, no quinto andar?!

- Se não falar o nome não abro!

- Mas... fui seu melhor amigo... e você não lembra da minha voz?

E realmente não lembrava mesmo, mas já estava convicto que tal cena passada era um sonho e logo lembrei que podia ali morrer e na segunda de manhã renascer ao acordar. Abri!

- Posso entrar? - Indagou a visita.

Meu Deus... realmente era sim meu amigo de infância, mas que pensei em nunca mais encontra-lo.

- Superman. O que faz aqui?

- Preciso conversar, posso entrar?

È claro que eu o deixei entrar, mas não me alegrava mais a sua visita como antigamente. Era menos que mais do mesmo receber essa peça de infância. Entrou derivando sobre o quarto escuro. Havia dez anos que não via mais.

- Pensei que nunca mais ia te ver.

- É, eu andei ausente. Pra falar a verdade, não vim com a intenção de te ver. Fui escalado no sonho do menino que mora no 301 e resolvi passar por aqui.

- Escalado? Mas você não trabalha mais para a Liga da Justiça?

- Acabou.

- Cadê todos? Mulher Maravilha, Aranha? E a Marvel?

- Faliu, acabou. Hoje, com essa crise não tive outra escolha a não ser entrar em uma empresa de sonhos. Recruta heróis para participar de sonhos e quando não há demanda, animo festas infantis.

- Mas e os outros?

- Aranha, morreu. Foi visitar seu primo em uma lavoura no interior. Por causa das toxinas pulverizadas na plantação, teve complicações e não resistiu. Mulher Maravilha está famosa. Fechou um contrato milionário com uma gravadora e virou dançarina. Você deve conhecê-la. Cansou de salvar o mundo e por causa da negação da família virou funkeira. Seu codinome agora é Mulher Melancia e por fim estou aqui. Parece-me que você não ficou feliz?

E não tinha ficado mesmo. Nada haver com mágoa, por ele não ter aparecido quando o pneu do carro furou na autopista, quando o ladrão entrou na minha casa ou no falecimento de meu pai. Mas é que não era a mesma coisa, tinha criado novos heróis e gostava mais daqueles que carregavam em seu dorso um violão e quando dedilhavam, os sons que saiam, valiam mais que qualquer força praticada pela velha guarda.
O contexto atual também não lhe era favorável, as cores de sua roupa já estavam desbotadas e seu país que tanto infelicitou a cor do ébano, agora era presidido pela melanina, um mestiço imponente. Nada conciliador com o sonho americano e talvez fosse realidade mesmo. Em sua terra, não precisavam mais dele e sim de homens nem tão fortes, talvez obesos e carecas, mas intangíveis economicamente. Enfim, era muita ausência vivida para ser apagada em um encontro repentino.

-As coisas não são como antes. Eu mudei.

-Mas você fez jornalismo?

- Sim, por sua influência.

Amargurava na profissão. Pós-formação ainda não havia conseguido nenhum emprego. Pautei tantas atividades por causa de um herói e agora ele estava ali querendo um ouvido, como um divã, o homem desabafando e eu abafando.

Coitado, era um herói sem teto, ou melhor, sem sonhos. De certo que tentei ajudá-lo, mas ser um humano não era nada fácil pra quem foi herói. Então arrumei um colchão revestido por lençóis brancos e ele dormiu ao acalanto de meus novos heróis. Quando acordei, não havia mais herói e sim uma cama vazia.
Aprontei-me e comecei a vasculhar tranqueiras do passado antes que escurecesse novamente, até encontrar exemplares antigos do peito de aço. Apanhei uma lixeira, fui até a varanda e juntei todos os resquícios que sobrara daquela amizade e que se ainda havia, tinha que fazer um último pedido daquele histórico amigo. No suplício da fogueira foram queimando todas as páginas dos álbuns e fantasias de um tempo que devia ser apagado. Apanhei o máximo de de kriptonita e ladrilhei a minha janela. Assim nunca mais o veria, assim morria o último herói, assim morreu Superman.

Um comentário:

Débora disse...

Será que algum dia eu vou encotrar com a Mulher Gavião?
e ela vai me contar que ser durona não ajuda em nada, e que se proteger com uma armadura e um machado, só machuca mais?
viu, eu tb tenho um eu lirico!